quarta-feira, 23 de julho de 2014

A Educação que resolve: hora de ficar na escola

Por Itamar Melo, para a Zero Hora*

Como muitos alunos do ensino público, Gabrielle Mendes Ferreira, 14 anos, chegou pouco antes das 8h de quinta-feira à escola. Como poucos, veio preparada para uma jornada que se estenderia até o fim da tarde. A garota da Ilha da Pintada frenquenta o 8º ano em um dos primeiro estabelecimentos a adotar a Educação em tempo integral como decorrência de uma lei estadual sancionada no começo deste ano, que obriga o Rio Grande do Sul a implantar o modelo em metade dos colégios de Ensino Fundamental.

O dia de Gabrielle na Escola Estadual Maria José Mabilde teve inicio com dois períodos de informática. Após o lanche no refeitório, vieram mais duas horas de matemática. Do meio-dia às 13h, ela fez intervalo para o almoço, feito na escola. A tarde começou com Educação física e inglês. Às 15h20min, foi ao laboratório para a aula de química. Foi a sua preferida.

“Estudamos os rins”, justificou Gabrielle.

A jornada de Gabrielle na escola (Fotos Zero Hora) 

Às 17h, ela colocou um casaco, abriu o garda-chuva e foi para casa, depois de nove horas de colégio. A mãe, Rosângela Mendes, 33 anos, está satisfeita com a nova rotina:

“Se ela ficasse em casa, ficaria vendo TV ou fazendo outra coisa que não fosse estudar. Na escola, não é reforço, é aula mesmo.”

A tendência é de que jornadas como a de Gabrielle virem rotina em todo o Brasil. O novo Plano Nacional de Educação estabeleceu metas para a ampliação do ensino em tempo integral ao longo de toda a Educação Básica, enquanto a rede privada se mobiliza para oferecer cargas de aula cada vez mais altas.

Em 26 de junho, enquanto a grande preocupação dos brasileiros era a partida contra o Chile pelas oitavas de final da Copa, um fato de relevância muito maior passou despercebido de quase todo mundo. Na edição daquele dia, o Diário Oficial da União publicou a sanção, pela presidente Dilma Rousseff, do novo Plano Nacional de Educação (PNE).

O documento estabelece que até 2024 metade das escolas públicas do país deve garantir ensino em tempo integral. Em 10 anos, 25% dos estudantes terão de passar pelo menos sete horas por dia em sala de aula.

Levando em consideração os números de hoje, isso significaria oferecer a modalidade em mais de 75 mil escolas, abrangendo 10 milhões de alunos. O Ministério da Educação conta com a ajuda dos royalties do petróleo para elevar de 6,4% para 10% a proporção do PIB investido no ensino, outra meta do PNE, de forma a dispor de recursos para disseminar o tempo integral.

— Nenhum país do mundo chegou a se transformar em uma nação desenvolvida sem que as crianças tenham dois turnos na escola — defendeu Dilma.

No Rio Grande do Sul, onde funcionam 7,5 mil escolas públicas, o PNE é reforçado por uma lei em vigor desde janeiro, que determinou a oferta de Educação integral em 50% dos estabelecimentos estaduais de Ensino Fundamental, no prazo de 10 anos. A Secretaria Estadual da Educação (SEC) começou a implantação neste ano. Já há 12.375 alunos da rede que passam cerca de oito horas por dia na escola, em 51 colégios espalhados por 38 cidades.

Uma das principais preocupações dos educadores é que, ao ampliar a carga horária, os sistemas de ensino se limitem a oferecer, no tempo extra, oficinas, atividades artísticas ou modalidades esportivas que estejam descoladas do currículo normal. A ideia é evitar o modelo assistencial, no qual o aluno fica na escola apenas para não estar na rua, e também o sistema de turno integral de colégios privados, em que os pais podem pagar um valor extra para que as crianças permaneçam durante o contraturno, muitas vezes em atividades recreativas.

— O tempo integral é uma necessidade. Mas existe um risco imenso. O PNE só fala em aumentar as horas, mas Educação integral não é ocupar o tempo das crianças. É preciso fazer uma transformação que coloque o turno e o contraturno em um  mesmo projeto pedagógico — afirma Maria Amabile Mansutti, coordenadora técnica do Centro de Referência em Educação Integral.

A diretoria-adjunta do departamento pedagógico da SEC, Rosa Mosna, afirma que essa preocupação é levada em conta no modelo em implantação no Estado. Foi desenvolvida uma proposta pedagógica específica, em que as disciplinas já existentes nas escolas de um turno só são mantidas, com a mesma carga horária, e atividades curriculares novas, obrigatórias ou eletivas, são adicionadas.

Além de português, matemática e história, os alunos têm agora aulas de iniciação à pesquisa, direitos humanos, leitura e produção textual. A orientação é que as escolas mesclem as disciplinas antigas e as novas ao longo do dia, para que os estudantes consigam enxergar que se trata de um todo.

— Muitos alunos acham que a escola tradicional é chata. Não dá para simplesmente dobrar as horas de matemática, de português. Ninguém merece. Procuramos organizar atividades novas, em que se trabalha por meio da pesquisa, de forma mais flexível, leve e lúdica, mas que também se relacionam com os conhecimentos de matemática e de português — diz Rosa Mosna.

Desafio para todos na Ilha da Pintada
Uma das escolhidas para implantar o tempo integral, a Escola Maria José Mabilde, na Ilha da Pintada, em Porto Alegre, deve fechar 2014 com 1.600 horas de aula — o dobro do exigido por lei. Os 178 alunos chegam às 8h e permanecem até às 17h. Têm à disposição café da manhã, almoço e dois lanches. O processo ainda é de adaptação, com alguns percalços. A diretora, Jurema Garzella, diz que só em agosto o novo currículo será adotado de forma completa.

Para dar conta da duplicação das horas de ensino, os 19 professores em atuação no ano passado revelaram-se insuficientes. Cinco deles tiveram a carga horária dobrada e alguns docentes que atuavam fora de sala de aula assumiram disciplinas. A SEC enviou oito novos profissionais, cinco deles na semana passada, mas ainda falta um. Algumas classes foram instaladas em uma área coberta do pátio, para driblar a escassez de salas.

— É um desafio, porque temos de elaborar uma identidade nova para a escola. Os professores sabem trabalhar, mas ainda estão se acostumando com o integral. Não digo que ocorrem bate-bocas, mas eles têm de fazer o planejamento integrado, e a tendência é cada um achar que seu jeito é o certo. Mas está havendo uma troca de experiência muito rica, e a gente vê um dizendo para o outro: é, você tinha razão — conta a diretora.

A escola da Ilha da Pintada foi escolhida porque já tinha uma experiência de tempo ampliado, por meio do programa federal Mais Educação, que garantia a presença de oficineiros. Essa oportunidade entusiasmou a aluna de 8º ano Camila Machado, de 13 anos.

Em 2013, quando teve de mudar-se para Guaíba por causa do trabalho da mãe, a estudante não se adaptou ao novo colégio. Insistiu tanto que a família voltou a residir na Ilha da Pintada. Durante um tempo, a mãe, Daise da Silva Machado, 34 anos, conformou-se em viajar todos os dias a Guaíba para que a filha estudasse no colégio:

— O sacrifício valia a pena. O turno integral favorece em todos os sentidos. O ensino é melhor e dá mais tranquilidade para a gente, que vai trabalhar sabendo que o filho está aproveitando bem o tempo.

Camila conta que às vezes tem de estudar no almoço ou no recreio, por causa do horário apertado.

— É puxado, é aula mesmo, o dia inteiro. Acho que vai ser uma coisa muito boa para o meu futuro — prevê.

Das 51 escolas a seguir o novo modelo, 29 já tinham, pelo menos em alguma medida, o tempo integral, uma herança de projetos antigos. Outras 22 foram incorporadas, de acordo com a estrutura e a aceitação da comunidade. A SEC ainda não fez os cálculos, mas estima que uma escola no novo modelo custe 75% a mais. O ritmo de implantação ainda está em estudo.

— Não basta um canetaço. Nossa estrutura não é como a de países que já pensaram a escola para o tempo integral. Nós concebemos uma escola pela metade — diz Rosa Mosna.

*Clique aqui para ver a série de matérias da Zero Hoje sobre o Plano Nacional de Educação e a escola de tempo integral.



Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...

Visualizações